terça-feira, 4 de novembro de 2014

Sinfonia dos Aflitos, Capítulo 4: Sozinhos...

            A mente do Encanador naquele momento havia se esvaziado, ele apenas observava a terrível cena bem a sua frente, assim como uma estatua assiste os dejetos soltos pelas aves virem em sua direção sem poder fazer nada. Não conseguia mover o seu corpo, ou pelo menos imaginava que não. A mão de sua filha Rachel fez com que ele despertasse para o mundo real, obrigando-o a voltar para aquele inferno. A mão frágil e gélida da garota suava frio ao tentar apertar com toda sua força a imóvel mão de seu pai. – Papai… Pa-papai… Os monstros… – Aquela voz perturbada e falhada ecoou em sua mente. A inocente voz da menina abalou seu coração, criando uma balada de emoções dentro de seu peito. Ele não poderia assistir sua pequena garotinha ser devorada até os ossos pelos mortos ambulantes, porém, o que ele poderia tentar fazer para impedir?

            Quando a esperança começava a sumir de seu coração, uma forte luz vinda do lado esquerdo da rua fez com que diversas criaturas fossem jogadas para longe. Completamente sem reação, bem a sua frente ele conseguiu avistar um carro militar passando sobre os corpos degenerados dos mortos que ousavam caminhar, mesmo depois de tirarem suas vidas. Meio a luz uma voz forte foi escutada, ela vinha do carro que acabara de salva-los da morte certa.


- Rápido! Vocês três, entrem aqui! – A voz havia sido clara, não deveriam passar nem mais um instante parados naquele lugar. Os três nunca foram tão rápidos correndo até um automóvel, nem mesmo em dia de chuva. Dentro do carro militar de coloração esverdeada, puderam notar apenas dois homens em seu interior, o soldado que guiava e o seu companheiro. O soldado que estava na direção acelerou bruscamente para escapar do castelo dos horrores que ali havia se tornado. Ele cortava o máximo possível entre as vias e os automóveis abandonados. O homem no passageiro virou sua atenção para Eric, Rachel e Kurt.


- Algum de vocês encontra-se ferido? – Indagou duvidoso em um tom bastante serio, assim como um verdadeiro soldado deve ser. Todos os três balançaram suas cabeças de forma negativa, sem produzir nenhum barulho. Continuou. – Algum de vocês esta portando equipamentos eletrônicos, como maquina fotográfica, celular, gravador, ou câmera de vídeo? - Interrogou ainda mais serio os três passageiros, porém, a mesma resposta negativa foi produzida por eles, criando um ar de duvida na mente do encanador.


            Eric achou aquelas perguntas um tanto estranhas, mas não deu a devida atenção para aquele assunto, pois se sentia aliviado em estar a salvo. Apertava sua filha meio aos braços quando o carro adentrou um enorme pátio aberto com uma extensa cerca ao centro, onde quinze soldados armados com fuzis encontravam-se exatamente do lado de fora aparentemente guardando as diversas pessoas que encontravam-se no seu interior. Assim que o carro se aproximou da enorme grade metálica, os gritos das pessoas tornaram-se audíveis, muitas delas gritavam por socorro, usando frases como “Nos tirem daqui.”, “Eu quero sair daqui.”, entre outras. Pararam justamente ao lado da entrada do cercado que era protegida por dois guardas. O soldado que havia feito o interrogatório apontou seu fuzil contra as três pessoas pousadas no banco de trás, desta vez proferindo frases muito mais agressivas. – Rápido, quero vocês três fora do carro… Entrem ai dentro! – Eric e Kurt se impressionaram com a mudança de comportamento do militar, obrigando-os a entrar no cativeiro improvisado, cheio de pessoas desesperadas e sofrendo. Os três desceram do carro com muita calma, um ajudando o outro sem fazer qualquer pergunta. O mesmo militar sem pronunciar qualquer aviso prévio, começou a revistar e retirar qualquer pertence em pose dos três, até mesmo seus documentos e carteiras haviam sido recolhidos. Em seguida já se viam obrigados a entrar na prisão comunitária, onde a solidão apenas aumentava graças à enorme quantidade de pessoas gritando por socorro, ignorando que outros indivíduos também partilhavam da mesma agonia, demonstrando que em um momento difícil o ser humano apenas pensa em sua própria proteção.


            Eric agarrou sua filha no colo e correu em direito a uma folga entre uma pessoa e outra, chegando perto de um dos militares que vigiavam o cercado.


- Por favor… Você, por favor. – Não conseguia nenhuma resposta. – Senhor, por favor… Eu estou com minha filha, quero saber o que esta acontecendo. – O soldado não mostrava indícios de querer conversar. – Estou te implorando, por minha filha. – Ao ouvi-lo discretamente voltou sua atenção ao protagonista, talvez com receio pela situação que se encontravam, ou talvez pela própria garotinha com medo. O homem olhou para os dois lados e então virou parcialmente o seu corpo de encontro a grade, dando a entender que estava apenas observando o outro lado do continuo cercado.


- Vocês todos se encontram em quarentena militar, nos não podemos deixar ninguém livre correndo o risco de infectar mais civis. Ainda estamos aguardando ordens superiores para sabermos o que fazer, até lá vocês deveram ficar ai dentro. – Eric não havia entendido perfeitamente suas palavras graças o barulho que as demais pessoas produziam, mas entendeu a seriedade do assunto… Era provável que algumas pessoas dentro da “proteção” ainda estivessem em fase de mutação, ou seja, se tornando uma das criaturas canibais que se alimentavam das pessoas que ainda possuíam vida em seus corpos.


- Mas que Merda! – Praguejou indo de encontro a Kurt que estava escorado a grade, possivelmente descansando seu corpo e tentando colocar sua mente em ordem. Eric sentia a tensão transbordar pela orbita dos olhos de seu amigo, sabendo que ele agora era como uma bomba relógio apenas esperando o último “tic-tac” para finalmente cumprir o objetivo de sua existência, explodir.


- Cara… Você esta bem? – Indagou curioso observando seu companheiro de fuga, que apenas retribuiu com um breve olhar tristonho. – Temos que tomar cuidado… Acho que mesmo aqui dentro não estamos seguros. – Recostou-se também contra a gélida grade, sentindo os pelos de seu corpo arrepiarem-se pela baixa temperatura, graças ao ambiente aberto que tornava tudo aquilo uma terrível geladeira natural. Apertou sua filha contra o corpo, tentando passar o natural calor humano para a pobre criança. Observava à fumaça produzida por sua respiração, notando ainda os incansáveis pedidos das pessoas ao implorarem por suas liberdades. Apenas agora começou a cair a ficha do porquê daquelas pessoas estarem pedindo com tanto alvoroço para saírem dali. “Merda… Estamos perdidos!” entendia a situação. Observou que sobre a extensão do enorme pátio algumas pessoas se encontravam deitadas em pleno sereno, com seus corpos encolhidos, assim como um mendigo ao tentar se aquecer em um noite fria de inverno. 

“A friagem irá matá-los mais rápido… É obvio que aqui dentro ainda tem pessoas doentes!”, tentou imaginar até quando elas permaneceriam deitadas, ou se elas realmente estariam infectadas. Ainda tentando pensar notou que a iluminação produzida pelos holofotes começou a piscar freneticamente. Aquilo fez as impacientes pessoas começarem a entrar em desespero, todas elas pareciam completamente loucas.


            Um soldado, trajando sua farda se aproximou da grade, em mãos uma extensa mangueira de bombeiro. Com apenas um sinal, o jato d'água começara a jorrar. Pessoas começaram a sair da grade, procurando abrigo ou se esconder dos jatos. O encanador e seu grupo se encolheu, molhados, porém, a água cessara. Por que haviam molhado todos? Seria uma prevenção para a descontaminação? Para afastar as pessoas da grade? Para acalmá-los? Ou para no frio, todos morrem?


- E eu imaginando que isso não poderia piorar… – Ouviu ao seu lado a voz triste de Kurt. O encanador voltou sua atenção para a extensão do pátio, quando notou que algumas das pessoas deitadas começaram a lentamente se levantar. Não conseguiria ouvir se estavam gemendo graças à euforia que havia tomado a prisão, ou por algo pior. Toda aquela cena parecia mais um maldito filme de terror: pessoas que deveriam estar mortas perambulavam lentamente com seus olhares vazios em direção de suas indefesas vítimas, encurralando-as contra uma grade tão fria quanto à noite. A luz piscava freneticamente, aumentando o pavor das pessoas ao perderem parcialmente suas visões graças à iluminação falha. As imagens melancólicas dos mortos sumiam e apareciam mais próximos de suas carnes, produzindo um terror absoluto em sua mente, perturbando sua consciência ao saberem que sua morte caminhava de forma lenta e irrevogável. Tudo parecia perdido a cada segundo que passava, a cada momento que as mandíbulas assassinas se aproximavam mais de suas vidas, a cada segundo…


- Droga venha Rachel! – Eric puxou sua filha com força ao notar as primeiras gotas de sangue serem esguichadas com gosto pelas veias rompidas dos corpos humanos ao terem a carne dilacerada. Os primeiros gritos de desespero começaram a ser produzidos pelas vítimas ao sentirem sua carne sendo mastigada ainda presas ao corpo, percebendo que a agonia apenas começara, e seria prolongada.


            O encanador começou a correr as cegas para longe do massacre. Conseguia ouvir os pavorosos gritos de agonia, a cada passo que dava em direção ao desconhecido. Kurt vinha logo atrás em passos alucinados tomados pela beira da loucura ao presenciar aquela chacina em massa. Sua mente perturbada o fizera tropeçar e cair três vezes antes de se aproximar do homem e sua filha. Em instantes encontravam-se juntos a uma grade, gritando para os soldados que apontavam aleatoriamente seus fuzis para o interior da prisão.


            Então a escuridão tomou conta do lugar, os holofotes finalmente faleceram. A única iluminação no ambiente era a luz natural produzida pela lua, que era parcialmente coberta pelas nuvens da noite. Mais a frente era possível ver a sombra das pessoas desesperadas correndo de um lado para o outro, e os flashes dos disparos viajando direto para o interior da substituída prisão, aquilo havia tornado-se um cemitério. 


            Os três rapidamente se abaixaram procurando proteção dos disparos. Eric observava o semblante do grande número de pessoas tentando pular a grade de “proteção”, enquanto os soldados buscavam impedir que conseguissem. Conseqüentemente a grade se rompera, despencando com brutalidade e ferindo muitas pessoas com seus arames farpados. Em frenesi de pavor as pessoas começavam a correr aleatoriamente para os lados, enquanto algumas atacavam os guardas, e outras caminhavam sobre a abertura que acabara de ser criada com esperança de fuga. O encanador notou que pelo menos um terço das pessoas caminhando sobre a grade não possuía o caminhar natural de um ser humano, distinguindo então os mortos ambulantes que agora haviam tomado um maior número entre aquelas pobres presas desesperadas.


- Fiquem quietos, por favor… – Eric olhou o rosto pouco iluminado de sua filha, notando uma triste expressão de espanto enquanto ela observava a cena como um cinema, assistindo varias pessoas serem devoradas, enquanto outras tentavam resistir a inevitável morte que as aguardava, algumas buscavam correr para lugares escondidos pela noite, tentando esconder suas presenças das criaturas lá fora.


            Apenas um único pai parecia realmente preocupado. – Xiiii, não olha filha, olha pro papai, olha pra mim… – Colocava sua mão sobre a face da garota. Sabia que não deveria demorar nem mais um segundo naquele cenário macabro, pois ali seriam alvos fáceis. A primeira coisa que fizeram foi levantar e partir em uma corrida ziguezagueando entre os corpos aparentemente mortos no solo umedecido pela água, assim como tentando desviar dos ambulantes que ainda se encontravam mais atrás do tumulto. Conseguiram passar despercebidos, graças ao grande número de pessoas que ainda combatiam os mortos-vivos, ou que ainda eram dilacerados pelas mandíbulas manchadas dos ambulantes.


- Por aqui… – Pronunciou Kurt com uma voz baixa ao puxar bruscamente o braço de Eric levando-o em direção a um prédio de quatro andares sem iluminação a alguns metros de distancia entre a cerca tombada a direita. Notaram que as pessoas corriam na direção oposta, porém, imaginaram que isso era graças à euforia do momento. Seus corpos se chocaram contra a pesada porta dupla do prédio, a mesma nem mesmo se movera.


- Droga ela esta fechada Kurt… Devemos ir para outro lugar. – Puxava seu amigo a direção oposta quando ele o impediu de continuar. O homem olhava para a face escura – graças à noite. – de seu companheiro tentando entender o porquê dele ter o impedido de continuar.


- Não… Vamos entrar aqui dentro. Não acho que outro lugar seja seguro… Seja lá o que os Militares estavam guardando ele deve estar aqui dentro, sendo assim aqui deve ser seguro. – Não sabia o que estava dizendo, apenas tirara conclusões pelo que havia imaginado em sua mente perturbada, porém, Eric não sabia o que fazer como também não sabia para onde ir. Kurt correu pela extensão do prédio procurando encontrar alguma abertura para que pudessem adentrar a residência. Notou que quase todas as janelas do primeiro andar estavam bloqueadas por pranchas de madeira que impediriam que qualquer coisa entrasse ou saísse. Apenas uma única janela se encontrava desprotegida do bloqueio improvisado. Sem demora o homem pegara um pedaço de madeira que encontrara no chão e partira para destruir o vidro e então abrir um caminho para o lugar que supostamente acreditava ser seguro.


            Ainda em frente à porta Eric começara a reconhecer o ambiente que o rodeava, mesmo estando no escuro conseguira distinguir o lugar a sua volta, e por final descobrir o lugar que estavam prestes a invadir. Este era o único hospital da cidade, local de amparo das vitimas da gripe. Quando isso veio a sua mente um baque agudo de vidro sendo quebrado fez seus pensamentos desaparecerem, e logo em seguida Kurt viera correndo em direção do encanador.


- Rápido consegui achar uma entrada, quase todas as janelas estavam bloqueadas, mais uma delas não estava… Vamos! – Era visível em seus movimentos a excitação e alegria que o homem sentira ao se iluminar com falsas expectativas. Mesmo não entendendo o porquê de sentir em sua mente certa desconfiança o homem seguiu seu amigo guiando sua filha de encontro à janela quebrada. Foram até a parte traseira do prédio para chegarem ao lugar onde Kurt havia quebrado o vidro, o corredor era estreito, com uma pequena escadaria lateral que levara a uma porta metálica. Encontraram algumas caçambas de lixo encostadas sobre a parede. A janela estava muito próxima da escadaria, o que facilitaria sua entrada no prédio.


- Esperem tive uma idéia! – O homem pálido de cabelos escuros como seus olhos demonstrava-se ainda mais feliz. – Não acha melhor eu entrar primeiro e abrir esta porta para vocês? – Apontara para a escadaria e a porta metálica. – Caso não tenha como eu volto eu o ajudo a entrar. Será melhor e menos perigoso para sua filha. – Olhou rapidamente para a menina, brotando um sorriso estranho em sua boca, voltando logo sua atenção para Eric.


- T-tudo bem… – Respondeu sem ter certeza do que deveria falar. O encanador começou a notar a expressão de seu amigo mudar completamente, de apavorado para excitação e alegria completa.


            Acompanhou com o olhar seu amigo correndo em direção a janela, pulando-a rapidamente, adentrando a escuridão sem fim no interior do hospital. Seguiu por alguns instantes em silencio. Mas logo ouvira o barulho de uma porta se destrancar no interior do prédio enquanto caminhava lentamente junto a sua filha de encontro à pequena escadaria. Seus ouvidos estavam ligados no que acontecia dentro do edifício, quando ouvira um grito e fortes baques de passos dentro do lugar. Não podia ver o que estava acontecendo, apenas conseguia ouvir os diversos “Ai meu Deus…” ecoando em todo o ambiente. Antes da imagem de seu amigo aparecer pela janela ele ouvira uma frase diferente pronunciada pelo homem. – Me larguem seus filhos da puta! – O grito fora proferido em pura fúria instantes antes do homem se projetar frente à janela com diversos braços em degeneração tentando puxá-lo de volta, o mesmo tentava se jogar para fora do edifício. Eric viu a imagem de seu amigo lutando para sair do lugar, e a terrível expressão de medo que tomava conta de sua face. – Me ajuda… Por favor! – Sua voz sendo abafada pouco a pouco implorando pela ajuda, enquanto o encanador simplesmente não pudera fazer nada, seu corpo imóvel não demonstrava nem sequer indícios de que pretendia ajudar o companheiro no embate por sua vida. – Você… Por quê? – Foram as ultimas palavras ouvidas antes de assisti-lo ser puxado por completo para dentro do lugar, o barulho frenético de mandíbulas e braços se debatendo eram ouvido claramente. Ele não podia se culpar, não havia o que fazer. O homem já estava condenado, entendia isso, sua sanidade estava na beira do precipício, pronta para mergulhas na maluquice completa. “O que eu poderia ter feito?” ao notar mãos sendo erguidas, agarradas a beirada da janela, revelando uma quantidade enorme de amaldiçoados procurando sair do lugar, entendeu a desconfiança que sentia em seu peito. 

"Que lugar poderia guardar um maior numero de monstros do que um hospital? A maioria das pessoas que estavam doentes procurou o hospital, morreram em seu interior, e continuaram por lá até agora."


            Alguns corpos começaram a despencar sobre o chão, produzindo gemidos próximos ao de sofrimento, ou dor. Eric se virou para a direção oposta do lugar, caminhando de volta ao lugar onde se encontrava a tombada prisão dos mortos. Quando se aproximou do lugar notou corpos abaixados, corcundas, ao se deliciar com a carne morta dos corpos recém abatidos. O lugar permanecia em um silencio total, sendo preenchido apenas pela sinfonia dos aflitos, pela canção dos condenados a vagar eternamente no sofrimento sem fim.




O homem observou a face de sua garotinha, notando um rosto inexpressível frente aquela maldita situação. Sentiu uma tristeza enorme em seu peito ao notar que sua inocente filha havia se acostumado com toda aquela carnificina. Agora, estavam sozinhos…

Nenhum comentário:

Postar um comentário