A
mente do Encanador naquele momento havia se esvaziado, ele apenas observava a
terrível cena bem a sua frente, assim como uma estatua assiste os dejetos
soltos pelas aves virem em sua direção sem poder fazer nada. Não conseguia
mover o seu corpo, ou pelo menos imaginava que não. A mão de sua filha Rachel
fez com que ele despertasse para o mundo real, obrigando-o a voltar para aquele
inferno. A mão frágil e gélida da garota suava frio ao tentar apertar
com toda sua força a imóvel mão de seu pai. – Papai… Pa-papai… Os
monstros… – Aquela voz perturbada e falhada ecoou em sua mente. A inocente voz
da menina abalou seu coração, criando uma balada de emoções dentro de seu
peito. Ele não poderia assistir sua pequena garotinha ser devorada até os ossos
pelos mortos ambulantes, porém, o que ele poderia tentar fazer para impedir?
Quando
a esperança começava a sumir de seu coração, uma forte luz vinda do lado
esquerdo da rua fez com que diversas criaturas fossem jogadas para longe.
Completamente sem reação, bem a sua frente ele conseguiu avistar um carro
militar passando sobre os corpos degenerados dos mortos que ousavam caminhar,
mesmo depois de tirarem suas vidas. Meio a luz uma voz forte foi escutada, ela
vinha do carro que acabara de salva-los da morte certa.
- Rápido! Vocês três, entrem aqui! – A voz havia
sido clara, não deveriam passar nem mais um instante parados naquele lugar. Os
três nunca foram tão rápidos correndo até um automóvel, nem mesmo em dia de
chuva. Dentro do carro militar de coloração esverdeada, puderam notar apenas
dois homens em seu interior, o soldado que guiava e o seu companheiro. O
soldado que estava na direção acelerou bruscamente para escapar do castelo dos horrores
que ali havia se tornado. Ele cortava o máximo possível entre as vias e os
automóveis abandonados. O homem no passageiro virou sua atenção para Eric,
Rachel e Kurt.
- Algum de vocês encontra-se ferido? – Indagou
duvidoso em um tom bastante serio, assim como um verdadeiro soldado deve ser.
Todos os três balançaram suas cabeças de forma negativa, sem produzir nenhum
barulho. Continuou. – Algum de vocês esta portando equipamentos eletrônicos,
como maquina fotográfica, celular, gravador, ou câmera de vídeo? - Interrogou
ainda mais serio os três passageiros, porém, a mesma resposta negativa foi
produzida por eles, criando um ar de duvida na mente do encanador.
Eric
achou aquelas perguntas um tanto estranhas, mas não deu a devida atenção para
aquele assunto, pois se sentia aliviado em estar a salvo. Apertava sua filha
meio aos braços quando o carro adentrou um enorme pátio aberto com uma extensa
cerca ao centro, onde quinze soldados armados com fuzis encontravam-se
exatamente do lado de fora aparentemente guardando as diversas pessoas que
encontravam-se no seu interior. Assim que o carro se aproximou da enorme grade
metálica, os gritos das pessoas tornaram-se audíveis, muitas delas gritavam por
socorro, usando frases como “Nos tirem daqui.”, “Eu quero sair daqui.”, entre
outras. Pararam justamente ao lado da entrada do cercado que era protegida por
dois guardas. O soldado que havia feito o interrogatório apontou seu
fuzil contra as três pessoas pousadas no banco de trás, desta vez proferindo
frases muito mais agressivas. – Rápido, quero vocês três fora do carro… Entrem
ai dentro! – Eric e Kurt se impressionaram com a mudança de comportamento do
militar, obrigando-os a entrar no cativeiro improvisado, cheio de pessoas
desesperadas e sofrendo. Os três desceram do carro com muita calma, um ajudando
o outro sem fazer qualquer pergunta. O mesmo militar sem pronunciar qualquer
aviso prévio, começou a revistar e retirar qualquer pertence em pose dos três,
até mesmo seus documentos e carteiras haviam sido recolhidos. Em seguida já se
viam obrigados a entrar na prisão comunitária, onde a solidão apenas aumentava
graças à enorme quantidade de pessoas gritando por socorro, ignorando que
outros indivíduos também partilhavam da mesma agonia, demonstrando
que em um momento difícil o ser humano apenas pensa em
sua própria proteção.
Eric
agarrou sua filha no colo e correu em direito a uma folga entre uma pessoa e
outra, chegando perto de um dos militares que vigiavam o cercado.
- Por favor… Você, por favor. – Não conseguia
nenhuma resposta. – Senhor, por favor… Eu estou com minha filha, quero saber o
que esta acontecendo. – O soldado não mostrava indícios de querer
conversar. – Estou te implorando, por minha filha. – Ao ouvi-lo discretamente voltou
sua atenção ao protagonista, talvez com receio pela situação que se encontravam,
ou talvez pela própria garotinha com medo. O homem olhou para os dois lados e
então virou parcialmente o seu corpo de encontro a grade, dando a entender que
estava apenas observando o outro lado do continuo cercado.
- Vocês todos se encontram em quarentena
militar, nos não podemos deixar ninguém livre correndo o risco de infectar mais
civis. Ainda estamos aguardando ordens superiores para sabermos o que fazer,
até lá vocês deveram ficar ai dentro. – Eric não havia entendido perfeitamente
suas palavras graças o barulho que as demais pessoas produziam, mas entendeu a
seriedade do assunto… Era provável que algumas pessoas dentro da “proteção”
ainda estivessem em fase de mutação, ou seja, se tornando uma das criaturas
canibais que se alimentavam das pessoas que ainda possuíam vida em seus corpos.
- Mas que Merda! – Praguejou indo de encontro a
Kurt que estava escorado a grade, possivelmente descansando seu corpo e
tentando colocar sua mente em ordem. Eric sentia a tensão transbordar pela
orbita dos olhos de seu amigo, sabendo que ele agora era como uma bomba relógio
apenas esperando o último “tic-tac” para finalmente cumprir o objetivo de
sua existência, explodir.
- Cara… Você esta bem? – Indagou curioso
observando seu companheiro de fuga, que apenas retribuiu com um breve olhar
tristonho. – Temos que tomar cuidado… Acho que mesmo aqui dentro não estamos
seguros. – Recostou-se também contra a gélida grade, sentindo os pelos de seu
corpo arrepiarem-se pela baixa temperatura, graças ao ambiente aberto que
tornava tudo aquilo uma terrível geladeira natural. Apertou sua filha contra o
corpo, tentando passar o natural calor humano para a pobre criança. Observava à
fumaça produzida por sua respiração, notando ainda os incansáveis pedidos das
pessoas ao implorarem por suas liberdades. Apenas agora começou a cair a ficha
do porquê daquelas pessoas estarem pedindo com tanto alvoroço para saírem dali.
“Merda… Estamos perdidos!” entendia a situação. Observou que sobre a extensão
do enorme pátio algumas pessoas se encontravam deitadas em pleno sereno, com
seus corpos encolhidos, assim como um mendigo ao tentar se aquecer em um noite
fria de inverno.
“A friagem irá matá-los mais rápido… É obvio que aqui dentro
ainda tem pessoas doentes!”, tentou imaginar até quando elas permaneceriam deitadas,
ou se elas realmente estariam infectadas. Ainda tentando pensar notou que a
iluminação produzida pelos holofotes começou a piscar freneticamente. Aquilo
fez as impacientes pessoas começarem a entrar em desespero, todas elas pareciam
completamente loucas.
Um soldado, trajando sua farda
se aproximou da grade, em mãos uma extensa mangueira de bombeiro. Com apenas um
sinal, o jato d'água começara a jorrar. Pessoas começaram a sair da grade,
procurando abrigo ou se esconder dos jatos. O encanador e seu grupo se
encolheu, molhados, porém, a água cessara. Por que haviam molhado todos? Seria
uma prevenção para a descontaminação? Para afastar as pessoas da grade? Para acalmá-los?
Ou para no frio, todos morrem?
- E eu imaginando que isso não poderia piorar… –
Ouviu ao seu lado a voz triste de Kurt. O encanador voltou sua atenção para a
extensão do pátio, quando notou que algumas das pessoas deitadas começaram a
lentamente se levantar. Não conseguiria ouvir se estavam gemendo graças à
euforia que havia tomado a prisão, ou por algo pior. Toda aquela cena parecia
mais um maldito filme de terror: pessoas que deveriam estar mortas perambulavam
lentamente com seus olhares vazios em direção de suas indefesas vítimas,
encurralando-as contra uma grade tão fria quanto à noite. A luz piscava
freneticamente, aumentando o pavor das pessoas ao perderem parcialmente suas
visões graças à iluminação falha. As imagens melancólicas dos mortos sumiam e
apareciam mais próximos de suas carnes, produzindo um terror absoluto em sua
mente, perturbando sua consciência ao saberem que sua morte caminhava
de forma lenta e irrevogável. Tudo parecia perdido a cada segundo que passava,
a cada momento que as mandíbulas assassinas se aproximavam mais de
suas vidas, a cada segundo…
- Droga venha Rachel! – Eric puxou sua filha com
força ao notar as primeiras gotas de sangue serem esguichadas com gosto pelas
veias rompidas dos corpos humanos ao terem a carne dilacerada. Os primeiros
gritos de desespero começaram a ser produzidos pelas vítimas ao sentirem sua
carne sendo mastigada ainda presas ao corpo, percebendo que a agonia apenas
começara, e seria prolongada.
O encanador começou a correr
as cegas para longe do massacre. Conseguia ouvir os pavorosos gritos de agonia,
a cada passo que dava em direção ao desconhecido. Kurt vinha logo atrás em
passos alucinados tomados pela beira da loucura ao presenciar aquela chacina em
massa. Sua mente perturbada o fizera tropeçar e cair três vezes antes de se
aproximar do homem e sua filha. Em instantes encontravam-se juntos a uma grade,
gritando para os soldados que apontavam aleatoriamente seus fuzis para o
interior da prisão.
Então
a escuridão tomou conta do lugar, os holofotes finalmente faleceram. A única
iluminação no ambiente era a luz natural produzida pela lua, que era
parcialmente coberta pelas nuvens da noite. Mais a frente era possível ver a
sombra das pessoas desesperadas correndo de um lado para o outro, e os flashes
dos disparos viajando direto para o interior da substituída prisão, aquilo
havia tornado-se um cemitério.
Os três rapidamente se abaixaram
procurando proteção dos disparos. Eric observava o semblante do grande número
de pessoas tentando pular a grade de “proteção”, enquanto os soldados buscavam
impedir que conseguissem. Conseqüentemente a grade se rompera, despencando com
brutalidade e ferindo muitas pessoas com seus arames farpados. Em frenesi de
pavor as pessoas começavam a correr aleatoriamente para os lados, enquanto
algumas atacavam os guardas, e outras caminhavam sobre a abertura que acabara
de ser criada com esperança de fuga. O encanador notou que pelo menos um terço
das pessoas caminhando sobre a grade não possuía o caminhar natural de um ser
humano, distinguindo então os mortos ambulantes que agora haviam tomado um
maior número entre aquelas pobres presas desesperadas.
- Fiquem quietos, por favor… – Eric olhou o
rosto pouco iluminado de sua filha, notando uma triste expressão de espanto
enquanto ela observava a cena como um cinema, assistindo varias pessoas serem
devoradas, enquanto outras tentavam resistir a inevitável morte que as
aguardava, algumas buscavam correr para lugares escondidos pela noite, tentando
esconder suas presenças das criaturas lá fora.
Apenas
um único pai parecia realmente preocupado. – Xiiii, não olha filha, olha pro
papai, olha pra mim… – Colocava sua mão sobre a face da garota. Sabia que não
deveria demorar nem mais um segundo naquele cenário macabro, pois ali seriam
alvos fáceis. A primeira coisa que fizeram foi levantar e partir em uma corrida
ziguezagueando entre os corpos aparentemente mortos no solo umedecido pela água,
assim como tentando desviar dos ambulantes que ainda se encontravam mais atrás
do tumulto. Conseguiram passar despercebidos, graças ao grande número de
pessoas que ainda combatiam os mortos-vivos, ou que ainda eram dilacerados
pelas mandíbulas manchadas dos ambulantes.
- Por aqui… – Pronunciou Kurt com uma voz baixa
ao puxar bruscamente o braço de Eric levando-o em direção a um prédio de quatro
andares sem iluminação a alguns metros de distancia entre a cerca tombada a
direita. Notaram que as pessoas corriam na direção oposta, porém, imaginaram
que isso era graças à euforia do momento. Seus corpos se chocaram contra a
pesada porta dupla do prédio, a mesma nem mesmo se movera.
- Droga ela esta fechada Kurt… Devemos ir para outro
lugar. – Puxava seu amigo a direção oposta quando ele o impediu de continuar. O
homem olhava para a face escura – graças
à noite. – de seu companheiro tentando entender o porquê dele ter o
impedido de continuar.
- Não… Vamos entrar aqui dentro. Não acho que
outro lugar seja seguro… Seja lá o que os Militares estavam guardando ele deve
estar aqui dentro, sendo assim aqui deve ser seguro. – Não sabia o que estava
dizendo, apenas tirara conclusões pelo que havia imaginado em sua mente
perturbada, porém, Eric não sabia o que fazer como também não sabia para onde
ir. Kurt correu pela extensão do prédio procurando encontrar alguma abertura
para que pudessem adentrar a residência. Notou que quase todas as janelas do
primeiro andar estavam bloqueadas por pranchas de madeira que impediriam que
qualquer coisa entrasse ou saísse. Apenas uma única janela se encontrava
desprotegida do bloqueio improvisado. Sem demora o homem pegara um pedaço de
madeira que encontrara no chão e partira para destruir o vidro e então abrir um
caminho para o lugar que supostamente acreditava ser seguro.
Ainda
em frente à porta Eric começara a reconhecer o ambiente que o rodeava, mesmo
estando no escuro conseguira distinguir o lugar a sua volta, e por final
descobrir o lugar que estavam prestes a invadir. Este era o único hospital da
cidade, local de amparo das vitimas da gripe. Quando isso veio a sua mente um
baque agudo de vidro sendo quebrado fez seus pensamentos desaparecerem, e logo
em seguida Kurt viera correndo em direção do encanador.
- Rápido consegui achar uma entrada, quase todas
as janelas estavam bloqueadas, mais uma delas não estava… Vamos! – Era visível
em seus movimentos a excitação e alegria que o homem sentira ao se iluminar com
falsas expectativas. Mesmo não entendendo o porquê de sentir em sua mente certa
desconfiança o homem seguiu seu amigo guiando sua filha de encontro à janela
quebrada. Foram até a parte traseira do prédio para chegarem ao lugar onde Kurt
havia quebrado o vidro, o corredor era estreito, com uma pequena escadaria
lateral que levara a uma porta metálica. Encontraram algumas caçambas de lixo
encostadas sobre a parede. A janela estava muito próxima da escadaria, o que
facilitaria sua entrada no prédio.
- Esperem tive uma idéia! – O homem pálido de
cabelos escuros como seus olhos demonstrava-se ainda mais feliz. – Não acha
melhor eu entrar primeiro e abrir esta porta para vocês? – Apontara para a
escadaria e a porta metálica. – Caso não tenha como eu volto eu o ajudo a
entrar. Será melhor e menos perigoso para sua filha. – Olhou rapidamente para a
menina, brotando um sorriso estranho em sua boca, voltando logo sua atenção
para Eric.
- T-tudo bem… – Respondeu sem ter certeza do que
deveria falar. O encanador começou a notar a expressão de seu amigo mudar completamente,
de apavorado para excitação e alegria completa.
Acompanhou
com o olhar seu amigo correndo em direção a janela, pulando-a rapidamente,
adentrando a escuridão sem fim no interior do hospital. Seguiu por alguns
instantes em silencio. Mas logo ouvira o barulho de uma porta se destrancar no
interior do prédio enquanto caminhava lentamente junto a sua filha de encontro
à pequena escadaria. Seus ouvidos estavam ligados no que acontecia dentro do
edifício, quando ouvira um grito e fortes baques de passos dentro do lugar. Não
podia ver o que estava acontecendo, apenas conseguia ouvir os diversos “Ai meu
Deus…” ecoando em todo o ambiente. Antes da imagem de seu amigo aparecer pela
janela ele ouvira uma frase diferente pronunciada pelo homem. – Me larguem seus
filhos da puta! – O grito fora proferido em pura fúria instantes antes do homem
se projetar frente à janela com diversos braços em degeneração tentando puxá-lo
de volta, o mesmo tentava se jogar para fora do edifício. Eric viu a imagem de
seu amigo lutando para sair do lugar, e a terrível expressão de medo que tomava
conta de sua face. – Me ajuda… Por favor! – Sua voz sendo abafada pouco a pouco
implorando pela ajuda, enquanto o encanador simplesmente não pudera fazer nada,
seu corpo imóvel não demonstrava nem sequer indícios de que pretendia ajudar o
companheiro no embate por sua vida. – Você… Por quê? – Foram as ultimas
palavras ouvidas antes de assisti-lo ser puxado por completo para dentro do
lugar, o barulho frenético de mandíbulas e braços se debatendo eram ouvido
claramente. Ele não podia se culpar, não havia o que fazer. O homem já estava
condenado, entendia isso, sua sanidade estava na beira do precipício, pronta
para mergulhas na maluquice completa. “O que eu poderia ter feito?” ao notar
mãos sendo erguidas, agarradas a beirada da janela, revelando uma quantidade
enorme de amaldiçoados procurando sair do lugar, entendeu a desconfiança que
sentia em seu peito.
"Que lugar poderia guardar um maior numero de monstros
do que um hospital? A maioria das pessoas que estavam doentes procurou o
hospital, morreram em seu interior, e continuaram por lá até agora."
Alguns
corpos começaram a despencar sobre o chão, produzindo gemidos próximos ao de
sofrimento, ou dor. Eric se virou para a direção oposta do lugar, caminhando de
volta ao lugar onde se encontrava a tombada prisão dos mortos. Quando se
aproximou do lugar notou corpos abaixados, corcundas, ao se deliciar com a
carne morta dos corpos recém abatidos. O lugar permanecia em um silencio total,
sendo preenchido apenas pela sinfonia dos aflitos, pela canção dos condenados a
vagar eternamente no sofrimento sem fim.
O homem observou a face de
sua garotinha, notando um rosto inexpressível frente aquela maldita situação. Sentiu
uma tristeza enorme em seu peito ao notar que sua inocente filha havia se
acostumado com toda aquela carnificina. Agora, estavam sozinhos…